Disco Elysium e a arte de não esperar nada

Falar ou escrever sobre este jogo é como versar sobre um livro muito bom que através das palavras, faz você olhar para dentro de si. É ao mesmo tempo complicado e prazeroso, a começar pela estrutura inusitada: você assume o papel de um camarada que acordou pelado com uma ressaca monstra, num quarto de hotel destruído, sem saber quem é ou porque está ali.

Algum tempinho depois dessa catarse, aparentemente as pessoas enfiam goela abaixo que você é um detetive, ainda que não esperem que você haja como tal. Com exceção de um colega da força policial, Kim Kitsuragi, que, de forma muito paciente, espera que você colabore com ele na resolução de um assassinato ocorrido nas redondezas.

A moral é a debilidade do cérebro

Eu costumo dizer que as coisas verdadeiramente grandiosas podem ser descritas em poucas palavras. Apesar de possuírem uma profundidade abismal por trás das mesmas, o que adiciona ao seu valor. Logo depois da introdução você tem que andar por aí explorando uma cidade fictícia chamada Revachol. Ao passo que vai falando com as pessoas para descobrir mais sobre si mesmo e, se quiser, solucionar o crime. Há uma ocasional checagem de parâmetros de personagem ao estilo RPG’s de mesa.

O “gameplay” de Disco Elysium é basicamente isso. É como abrir um livro em qualquer parte e perseguir determinado fio da história, moldando o protagonista e a realidade conforme as palavras dão vida à premissa estabelecida. Simples, porém, como dito, nada simplório. E a profundidade reside, principalmente:

  • Nos diálogos com as pessoas da cidade de Revachol que, sem exceção, são extremamente bem escritas e representam, como em nenhum jogo, a miséria e beleza da diversidade humana.
  • Nas conversas dentro da cabeça do protagonista bêbado amnésico, que representam os segmentos compartimentados de sua mente – como seu “sistema límbico” ou “lógica” – e sua interação com a casca decadente chamada corpo – como sua noção de resistência ou “limiar da dor”. São 34 personagens únicos, dentro da mente do protagonista, que passa a ser do jogador. Contextualizando e dialogando na medida que você interage com este mundo fictício, porém dolorosamente real. É uma viagem para dentro de si, como nenhuma outra.

Sonhos acordados

Acreditem, conversar com minha intuição e “sonhos acordados” durante uma autópsia, foi uma das experiências mais significativas que tive em jogos, nos últimos tempos, mas isto é porque eu escolhi investir pontos de habilidade nas partes subjetivas do protagonista. Disco Elysium, como todo bom RPG, te permite um alto grau de customização, no caso, na figura da psique do seu personagem.

É através destes companheiros da mente que algumas manifestações da realidade tomam aspectos surreais, como uma gravata que curte drogas ou um cadáver que conta sobre sua vida, no melhor estilo irônico de “Brás Cubas” do nosso gigante Machado de Assis. E, assim como nos contos ácidos do autor supracitado, este definitivamente não é um mundo dicotômico.

As palavras do protagonista. Ainda vivo.

No meio de tudo isso está você, o protagonista em questão, e você pode escolher, através de uma mecânica de internalização de pensamentos chamada “Armário de Pensamentos”, guardar linhas de pensamentos comunistas, fascistas, de apocalipse ou até mesmo ser um policial patologicamente apologético, alterando os parâmetros do seu personagem e a forma como se relaciona com os outros.

Você pode também escolher as roupas que quiser, beber, se drogar e, através das escolhas nos diálogos, ser um c***o com os outros ou ser um sujeito empático, de forma que todos estes aspectos se unem para formar uma narrativa onde você pode moldar o detetive amnésico segundo suas preferências e, surpreendentemente, segundo suas experiências, valores morais e éticos.

As palavras do novelista. Neve, chumbo e um carélio.

E tudo isso através de palavras (e de uma excepcional dublagem)! Além da ambientação do jogo e dos personagens, muita coisa se desdobra em palavras, palavras e mais palavras, a estrela aqui é o texto, a afiada escrita! Todas as vezes eu ficava me perguntando como diabos um time tão pequeno conseguiu fazer um CRPG (isto é, a cepa de RPG’s de computador como “Planetscape” ou “Pillars of Eternity”) que mais parecia um daqueles monumentais romances de Victor Hugo ou Alexandre Dumas.

Tudo fez mais sentido quando, por curiosidade, descobri que o principal idealizador do jogo é um novelista estoniano chamado Robert Kurvitz, e me permitam enfatizar que realmente tudo fez mais sentido!

Vocês sabem onde fica a Estônia? Este é um país do Europa, fronteiriço com a Rússia, no mar báltico, ao sul da Finlândia. Mas porque estou contando isso? Porque percebi que Disco Elysium, além de ser uma experiência muito pessoal para o jogador, também a é igualmente para os desenvolvedores. Percebi que há muitas correspondências do jogo com a realidade, desde a costa gélida de Revachol até o pano de fundo político: a Estônia é um país ex-membro da União Repúblicas Socialistas Soviéticas, aquela mesmo do bigodudo malvado.

Revoluções e Revachol

Curiosamente, a cidade fictícia de Revachol foi berço de uma Revolução Socialista malfadada e você vaga por uma paisagem urbana arrasada pela guerra. Porém, mais do que isso, você tateia os sentimentos de seres humanos igualmente devastados. Alguns cujo calor das revoluções internas já se apagou. Outros conformados demais com a complexa realidade de forças maiores que si para sequer esboçar reação. Enquanto há outros preocupados com sua situação de miséria material, crianças sem perspectiva e adultos aparentemente felizes em sua alienação.

A complexidade de forças políticas e o embate das instituições é ainda mais assombrosamente real. Ainda mais por ser um mundo rico e costurado por uma história que traça uma série de paralelos com a nossa realidade. Para ficar apenas num exemplo, a cidade de Revachol está sob jurisdição de uma coalisão de potencias estrangeiras, que fazem o que bem entender de uma unidade geográfica que agrega diversas etnias. Isto remete as repúblicas bálticas que foram submetidas ao julgo soviético até os anos 90 e, durante a Segunda Guerra, foram ocupadas pela Alemanha Nazista.

O próprio Robert Kurvitz faz parte de uma etnia chamada de Carélios, cujo território encontra-se parte na Rússia e parte na Finlândia. Essa aproximação com o real é permeada por uma maturidade muito bem-vinda na forma como o jogo trata de certos assuntos como, por exemplo, na figura dos supremacistas raciais do jogo que são uma personificação inversa das pseudo-ciências que justificam as posições espúrias deste tipo de gente, escancarando suas contradições.

As palavras dos humanos. Paródias e tragédias de si mesmos.

Disco é um testamento do papel desagregador e destrutivo das forças do capital. Ele, que opera nas mentes dos povos e na acepção de um mundo terrivelmente frio. E aqui não estou falando de temperatura.

Revachol fica num arquipélago, oportunamente parecido com algumas das localizações geográficas que vemos no mar báltico do nosso mundo. Através da ótima narração e do exercício de imaginação que o jogo nos oferece, este mundo se estende para além dos subúrbios, dos campos de batata, das ilhas, do continente e da nossa percepção. Este é um jogo que lida com as sensações e sentimentos de forma única.

É artístico na medida que apresenta muitas interações de forma sinestésica e consegue arrancar do jogador raiva, repulsa, compaixão; mas o incrível aqui é o que ele traz de mais oculto: outros sentimentos que você não esperava. Aquela mágoa que você carrega e que você vê refletida ali, naquela moça virtual olhando o mar, numa noite fria e melancólica no píer de uma vila decadente de pescadores. De repente tudo parece mais próximo, tudo parece fazer um pouco mais de sentido, mesmo que você não esperasse nada. Você percebe que podia ser aquele cara observando a moça, aquele detetive quebrado, que não esperava nada do mundo, que simplesmente acordou e saiu por aí tentando dar algum sentido a sua vida. Tentando achar a si mesmo.

As palavras d’um comunista. Moribundo.

2021.
Mais de 1 ano de pandemia e você mora no país tido como o epicentro da doença. Você não vê muitas perspectivas de melhora, porém tenta se manter positivo. De alguma forma você aperta um botão atrás da sua cabeça que impele a movimentar-se, de preferência pra frente. Ainda que muitas vezes, o simples ato de levantar depois de uma noite mal dormida seja uma baita rusga contra seu “Cérebro Reptiliano Primordial”:

“Em algum lugar na carne-humana ferida e inchada ao seu redor — uma sensação! Como uma mosca na sopa, sua consciência se gruda a ela. A máquina de dor e sofrimento humilhante com cabeça e membros está se acendendo novamente. Ela quer andar pelo deserto. Machucando. Desejando. Dançando ao som de “disco music”

Você se gruda a essa sensação quando você acorda. Não é algo que você consiga captar ou explicar, mas já é alguma coisa. Qualquer coisa que te faça focar na realidade que se aproxima, ainda que você não espere muito dela.

O primeiro passo, neste momento, é simplesmente agarrar sua existência. Seu coração já suprimiu dores demais para que você se iluda novamente, ainda assim sua vida parece uma eterna busca. Entretanto esta busca pode não te levar a nada, pode te levar a algo e pode te levar ao fim. Você abre os olhos e se vê no espelho, esperando o reflexo do seu rosto, mas tudo que vê é a careta da sua mente. Nada, nada, nada: é isto que você espera do mundo e é isto que você deseja que o mundo espere de você. Existir dói demais, dói nos ossos, mas ainda assim explorar este absurdo, desprovido de sentido, pode abstrair a dor. Pode até fazer a careta da sua mente parecer um pouco menos grotesca.

Vai que alguém gosta dela?

Uma singela obra-prima chamada Disco Elysium

Você tem algo em comum com o protagonista de uma singela obra-prima chamada “Disco Elysium”.A jornada existencial deste jogo alguma hora vai ressoar com seu abismo interior. Ainda que você não curta música disco ou seja um alcoólatra amnésico.

Quando você termina o jogo, nos créditos, aparece o slogan do estúdio ZA/UM: “Humanidade. Seja vigilante. Nós te amamos. ”

Estas foram as últimas palavras de Julius Fučík, jornalista comunista tcheco, torturado e assassinado pelos nazistas ao participar da resistência à ocupação do seu país.

As histórias de resistência, ainda que enterradas pela inexorável enxurrada de lutas perdidas, são as que vivem para sempre. Há vitória até em momentos derradeiros, há uma fagulha dentro do homem moribundo, ainda que você não espere nada. O rastilho ainda tem pólvora, e o árido e seco deserto deste mundo, torna a combustão mais ansiosa por se manifestar!

E isso é totalmente “disco”, meu chapa!