Já não é incomum vermos notícias dos incríveis feitos por inteligência artificial no mundo da tecnologia – em especial no ramo da computação e serviços automatizados, como carros autônomos e assistentes virtuais. Em 2021, até nossas casas estão se transformando em hubs para dispositivos inteligentes, graças a gadgets como o Echo Dot da Amazon ou o Google Mini. Basta usar outros equipamentos que se comuniquem com esses assistentes e você poderá ligar sua TV, acender ou apagar as luzes e criar toda uma rotina para sua semana usando apenas comandos de voz.
Não fica difícil de imaginar como deverá ser nossas vidas em futuro próximo em que toda atividade a ser exercida, em algum nível, terá envolvimento de inteligência artificial. Transporte, saúde, alimentação – o futuro utópico (ou distópico, em uma visão mais orwelliana das coisas) poderá ser ditado pela inteligência artificial. Em The Signifier, um jogo desenvolvido pela Playmestudio e publicado pela Raw Fury, inicialmente lançado em outubro do ano passado, todos esses temas são colocado à prova.
O jogador assume o papel do Dr. Frederick Russel, um cientista especialista em desenvolvimento de IAs e com forte inspirações em áreas da neurociência e psicologia. Russel é um dos responsáveis pelo desenvolvimento de uma tecnologia chamada Dreamwalker – um procedimento que transporta o usuário para memórias de uma pessoa e permite “explorar” essa lembrança, tanto em níveis objetivos quanto subjetivos.
No estado objetivo, a memória é reconstruída literalmente da forma como a pessoa se lembrava. Isso inclui, como era de se esperar, imperfeições e outros “glitches” que se manifestam de diversas formas na reconstrução. Já no estado subjetivo (e aqui entra uma das grandes sacadas do jogo), a memória possui traços latentes do que a pessoa estava sentido naquele momento; emoções se manifestam em outros objetos, pessoas e animais, não mostrando necessariamente o que de fato aconteceu ali. Muitas das reconstruções subjetivas possuem um toque de surrealismo e absurdo, cabendo ao jogador interpretar o que está sendo apresentado.
Essa tecnologia é ambiciosa, revolucionária e eticamente questionável. Nas mãos erradas, nem mesmo em nossas memórias estaremos seguros, e é esse o ponto que The Signifier traz à luz – o avanço tecnológico sem preceitos éticos se torna perigoso e predatório. Falando um pouco da história do game, Russel é contatado por um investigador para auxiliar em um caso fora do comum: a morte da vice presidente de uma das empresas de tecnologia mais importantes do mundo (na lore do jogo).
O doutor então precisa da ajuda de sua assistente virtual Eve para executar o Dreamwalker e reviver as últimas memórias dela, juntando as pistas e entender o que realmente aconteceu durante a morte da empresária. Foi um assassinato? Suicídio? As memórias inicialmente indicam que mais uma pessoa estava presente durante a morte, embora a reconstrução de suas memórias esteja confusa e embaçada. O estado subjetivo revela ainda mais pistas sobre como ela estava naquele momento – agitada e ciente de alguma coisa errada estaria para acontecer.
Cabe então ao cientista desvendar esse mistério enquanto explora ainda mais a fundo a vida da empresária e liga os pontos sobre várias perguntas referentes acerca de sua morte. O jogo é carregado de logs de áudio e vídeos que exemplificam mais sobre a tecnologia e os avanços de IA nas últimas décadas que culminaram na criação do Dreamwalker, incluindo demos e palestras de Russel sobre a tecnologia e um passo-a-passo de como Eve funciona.
Embora a exploração das memórias seja uma viagem surreal ao inconsciente humano, quando traduzimos isso ao gameplay, The Signifier cai em alguns problemas recorrentes que videogames com enfoque em quebra-cabeças caem geralmente: ficar indo e voltando em diferentes memórias até achar uma pista importante que te faça progredir no jogo. Pelo aspecto investigativo e exploratório do game em ambientes que parecem ter saído de uma pintura, ficar perdido não é uma ponto muito agradável.
Ainda sim, The Signifier toca em pontos importantes que devem ser pauta de discussões acaloradas nos próximos anos, um impasse ético sobre o futuro da inteligência artificial, seus avanços e malefícios para nós como sociedade. Para os amantes de IAs, behaviorismo e neurociência, The Signifier é um prato cheio – um jogo que se apropria muito bem do medium para contar uma história que está mais real do que pensamos.
A versão que joguei foi a Director’s Cut, que acrescenta novos finais, memórias, diálogos e uma expansão da narrativa e dos personagens. O game também teve uma melhoria na performance em PCs mais básicos e conta com algumas modificações de gameplay também. The Signifier Director’s Cut está disponível no Steam por R$ 37,99.