Implementação de novas tecnologias e ideias de design inovadoras sempre agitam os entusiastas e jogadores de videogame. É quase uma tradição; basta ver um estúdio de jogo inventar alguma novidade maluca que a galera fica bem atiçada – e eu incluso. E uma dessas grandes novidades veio da Ubisoft, com o terceiro game da franquia Watch Dogs que consistia em uma premissa bem simples: e se você pudesse jogar com qualquer um?
Qualquer NPC, qualquer transeunte na rua ou em avenidas, qualquer pessoa tocando instrumento em praça pública, qualquer morador de rua pedindo dinheiro. Ora, que ideia ousada! É o tipo de conceito que só de pensar por alguns momentos várias dúvidas e questões (muitos deles problemas) surgem e botam em cheque um sistema como esse. Como funcionaria aspectos básicos, como a narrativa e história do jogo?
E, de fato, existe uma miríade de problemas com esse recurso. É o tipo de ideia que muito provavelmente foi exaustivamente debatida pelo time de desenvolvimento antes de decidirem se realmente valeria a pena implementar. É inovador e impressionante, mas os contras são grandiosamente significantes. A Ubisoft fez o possível para trazer à vida o “jogue como qualquer um” da melhor maneira possível; e, em partes, ele funciona, mas, em várias outras, não.
Anarchy in the U.K
O tom da história em Watch Dogs Legion tenta ser muito mais sério e pesado do que o jogo anterior, se assemelhando bem mais ao primeiro Watch Dogs. Londres é a nova estrela do show e aqui temos uma pincelada de um futuro próximo sombrio: hipervigilância, desigualdade, nacionalismo exacerbado e tudo de ruim que dá pra imaginar num pré-cyberpunk. Levando isso em conta, temos um cenário perfeito para o desastre: um hacker conhecido como Zero-Day consegue implantar e bombardear diversos pontos em Londres, culpando o grupo de hacktivismo DedSec – os ‘protagonistas’ do jogo. Após as explosões e a DedSec ser injustamente taxada como responsável, uma organização paramilitar privada chamada Albion é contratada para “cuidar” da segurança da cidade, caçando membros e afiliados da DedSec.
Agora, nossos recrutas precisam se juntar para descobrir quem é Zero-Day e qual sua ligação com a Albion – tudo isso com a ajuda de uma I.A chamada Bagley e um membro supervisor da DedSec chamada Sabine. Bagley e Sabine são os personagens fixos que serão os responsáveis por criar contexto e deixar a história mais atrativa. Bagley, principalmente, faz um ótimo trabalho, desempenhando o papel da inteligência artificial engraçadinha que acrescenta um tom de leveza na narrativa mais pesada do jogo.
Entretanto, mesmo com a participação estrelar de Bagley, a história de Watch Dogs Legion é, de longe, um dos seus piores problemas. Em partes por culpa do sistema de jogar como qualquer pessoa, a falta de um protagonista bem escrito e estruturado causa uma tremenda estranheza em cutscenes e motivações de seus personagens. Por que diabos um operador da Albion ajudaria a DedSec após favores singelamente básicos? É nessa falta de contraste que o jogo peca; a fraca conexão que o jogador tem em relação à história e personagens.
Toda a apresentação dos temas (sérios) que o jogo conta me soaram um passo pra trás em relação ao game anterior. Claro, eu acho importantíssimo você evidenciar as várias problemáticas entre sistemas autoritários e fascistas com a resistência da população, porém estamos falando de uma empresa que jura que seus jogos não são políticos e que passou por maus bocados por conta de conduta imprópria de seus executivos. Essa representação de Londres pós-Brexit é superficial e falha em mostrar pontos relevantes para o atual cenário que estamos vivendo.
Isso sem contar as histórias paralelas em relação ao tráfico humano que eu nem preciso me adentrar muito pois já tivemos um preview sobre isso lá no primeiro jogo – raso, com antagonistas caricatos (estou falando de você mesmo, Mary Kelley) e uma tentativa frustrada de dar alguma profundidade para um assunto tão pesado. Em suma, uma narrativa fraca e remendada em várias storylines para tentar fazer jus ao complexo sistema de se jogar como qualquer pessoa.
Deus salve a rainha
Certo, mas como que funciona exatamente esse negócio de jogar como qualquer um? O que você precisa fazer para recrutar um “NPC” pro seu “time”? Na verdade, é um processo bem simples que pode ser resumido em dois passos: encontre um personagem que você goste (esteticamente ou por suas habilidades) e marque-o para recrutamento. Converse com o personagem e ele irá te pedir um favor. Realize a tarefa e a pessoa em questão entrará para a DedSec. Porém, existem alguns pontos a serem levantados: um deles é se o potencial recruta simpatiza com a causa ou, por algum motivo, não gosta ou tem opiniões contrárias à DedSec. Caso seja o segundo caso, você precisará “investigar” o personagem e fazer um favor a mais para fazê-lo mudar de opinião e, daí, continuar com a missão de recrutamento.
As missões de recrutamento são bem semelhantes umas das outras, com pequenas mudanças das facções e localidades. Variando apenas entre apagar rastros ou dívidas, salvar um relativo e coisas do gênero. Assim como essas missões, o gerador aleatório de personagens que o jogo se baseia é impressionante e decepcionante ao mesmo tempo. É possível encontrar vários “NPCs” parecidos (mesmo cabelo, feições faciais e até voz) e com pouca variação de habilidades. Cada personagem que você encontra tem equipamentos específicos que podem ou não ter a ver com sua ocupação. Por exemplo, um piloto de fuga tem um veículo próprio, um hack específico de afastar carros no meio do caminho e alguma outra skill aleatória. O mesmo vale para assassinos profissionais e espiões, habilidades próprias de cada ocupação.
E é nesse momento que toda a hype de “jogar como qualquer um” dá uma boa enfraquecida. Uma vez que seu time tiver todos os melhores operadores ou os que você mais gosta, pra quê se importar com outros 9 milhões de personagens gerados aleatoriamente? Meu time foi composto pelas mesmas pessoas basicamente o jogo inteiro, com poucas variações dependendo de quem eu encontrava. Trocar de personagens entre missões é esquisito, não há um senso de continuidade na narrativa ao ficar constantemente variando entre operadores cada missão. Senti falta de vários gadgets e equipamentos que um personagem específico tinha, me fazendo arrepender de ousar na troca de recrutas.
O fato de você só poder carregar um gadget de cada vez (variando entre dois tipos de aranha mecânica, uma armadilha de EMP, um hack de invisibilidade, um soco inglês elétrico etc.) e não poder misturar vários tipos de armamento dá uma boa desanimada na hora de ser criativo em sua abordagem. Vários hacks legais dos jogos anteriores também foram removidos, como o famoso apagão e o travamento de comunicações em massa. Senti vários passos para trás nesse quesito do gameplay.
Há coisas legais a serem consideradas também, como a melhoria do sistema de combate corpo-a-corpo, no gunplay e nas animações no geral. Usar um assassino profissional, por exemplo, te faz sentir como o verdadeiro John Wick nas missões – e isso é considerado um grande ponto positivo no meu livrinho. Mesmo assim, gostaria que essas adições tivessem sido mais significativas.
Vivendo no pós-Brexit
Watch Dogs Legion é um jogo descaradamente ambicioso. Tem um sistema que só um time muito apaixonado poderia criar, mesmo que os personagens gerados não sejam 100% únicos e suas performances, como a dublagem, deixem a narrativa meio robotizada. O gameplay é divertido, porém conta com missões repetitivas e uma história de revirar os olhos, apesar de tocar em pontos importantes.
Sinto que esse jogo serviu mais como um experimento maluco que pode dar muito certo em tecnologias e jogos futuros, mas que ainda não estava exatamente pronto. Ainda é um conceito interessante que precisa ficar mais no forno para atingir o ponto perfeito.
Importante: Essa análise foi realizada a partir de uma cópia para review gentilmente cedida pela publisher.