Esta análise contém spoilers do enredo de The Last of Us: Part II.
O lançamento de The Last of Us: Part II foi cercado de polêmicas e expectativas. Além de lidar com uma série de vazamentos, a Naughty Dog tinha não somente a responsabilidade de corresponder aos anseios dos fãs da franquia, mas também precisava entregar um jogo que fizesse jus ao enorme legado do primeiro jogo. O produto final possui uma excelência técnica nunca antes vista, mas será que agrada?
Uma breve introdução (com spoilers)
The Last of Us: Part II se passa 5 anos após os eventos do primeiro jogo. Joel e Ellie vivem em Jackson, uma comunidade de sobreviventes. Logo percebemos que Ellie carrega alguns traumas do final do primeiro jogo, sua personalidade está mais introspectiva e sua relação com Joel parece abalada. A rotina deles é interrompida de forma trágica quando Joel é assassinado com requintes de crueldade, despertando em Ellie um forte desejo de vingança. Apesar de decepcionar alguns fãs, a morte prematura de Joel serve de pretexto para a existência do jogo.
O desenvolvimento da história acontece em dois atos. No primeiro ato acompanhamos a jornada de Ellie em busca de vingança; no segundo ato percorremos a mesma linha do tempo na perspectiva da antagonista, Abby, em absoluta simetria, mostrando as motivações da nova personagem e gerando empatia com o jogador. Há diferenças de gameplay entre as protagonistas, bem exploradas pelo jogo. Ellie é mais ágil, experimenta mais quebra-cabeças e exploração vertical, enquanto Abby é mais bruta, encara mais combates e exploração horizontal, cada uma com seu próprio arsenal de armas e características de luta corporal.
No decorrer na campanha, alguns flashbacks jogáveis mostram situações do passado e ajudam a entender os acontecimentos dos últimos 5 anos. O jogo é encerrado com um epílogo visceral e emocionante. Mas após digerir o final e refletir por alguns dias, confesso que fiquei decepcionado pela pandemia e a cura serem pouco exploradas no enredo. A maior frustração, todavia, é perceber que The Last of Us: Part II construiu o roteiro numa premissa simples e previsível: a vingança vale a pena?
Onde The Last of Us: Part II falha?
O primeiro The Last of Us é sobre seres humanos complexos e seus sentimentos. Joel projeta na Ellie a relação com sua filha e toma atitudes questionáveis. Foi correto salvar Ellie e abrir mão da única possibilidade de encontrar a cura para a pandemia que assola o planeta? O final ambíguo do primeiro jogo permitiu que cada jogador tirasse sua própria conclusão, tornando a experiência muito íntima e pessoal.
Já em The Last of Us: Part II, a previsibilidade do roteiro torna a experiência de joga-lo, por vezes, maçante e aflitiva. De início, acreditei que o roteiro teria reviravoltas criativas, temendo que ele me mostrasse o óbvio. Os flashbacks são pontos positivos do roteiro, e mostram cenas contemplativas do passado dos personagens, repletas de carga emocional, provando que seres humanos são criaturas complexas e multidimensionais. Infelizmente, o resto da história é bem diferente.
Ellie, na maior parte do jogo, é retratada de forma unidimensional. Sua jornada é um ciclo de violência e morte. As conexões de Ellie com os novos personagens parecem rasas, e suas existências descartáveis. O mesmo se aplica para Abby e seu círculo social. Até as novas facções, Lobos e Cicatrizes, tentam matar uns aos outros sem nenhum motivo plausível, mostrando que o mundo se tornou um lugar completamente insano, cruel e miserável. Lev é um dos poucos, senão o único, personagem do jogo com um passado interessante e um pouco de humanidade e, ainda assim, ele é pouco explorado. Seria ótima oportunidade para uma DLC de história, como Left Behind.
O final ambíguo do primeiro jogo permitiu que cada jogador tirasse sua própria conclusão, tornando a experiência muito íntima e pessoal, aspecto que foi perdido em Part II.
A campanha tem duração longas 30 horas. A ânsia de terminar o jogo me fez “rushar” algumas partes, o que evidenciou alguns problemas na estrutura do jogo. Consegui eliminar hordas de inimigos com relativa facilidade, raramente usei todos os recursos de combate nem utilizei todos os espaços dos cenários, notei falhas na inteligência artificial dos humanos, e o combate contra infectados apresentou poucas inovações em relação ao jogo anterior.
A qualidade Naughty Dog está presente
Nos aspectos técnicos é onde The Last of Us: Part II transborda qualidade e refinamento. Os gráficos estão espetaculares e repleto de detalhes que dão vida ao mundo pulsante de The Last of Us, tornando a experiência bastante imersiva:
- Expressões e detalhes faciais dos personagens e inimigos infectados;
- Texturas dos objetos de concreto, metal, madeira, vidro, roupas, água, neve e vegetação;
- Interiores das casas, grafites e objetos que exalam personalidade das pessoas que viviam ali;
- Efeitos de iluminação, sombras, fumaça e esporos;
- Criaturas como cavalos, cachorros, ratos, esquilos e insetos que se assustam com a luz.
A performance dos atores nas cutscenes é digna de elogios, bem como a fluidez na transição das cenas gravadas para gameplay. O renomado músico e compositor Gustavo Santaolalla está de volta com a sua característica trilha sonora, adicionando uma carga dramática nas interpretações.
Também merecem destaque as mecânicas, sistemas e física do jogo:
- Cordas e cabos;
- Violão;
- Puzzles para ligar a energia, abrir cofres, abrir portas e encontrar saídas;
- Animações de movimentação dos personagens e combate corpo-a-corpo;
- Gunplay das armas de fogo e seus upgrades.
Também merecem elogios os poucos, mas marcantes, segmentos cinematográficos, característica da Naughty Dog bastante presente na série Uncharted. Os elementos de RPG tornam mais agradável a exploração dos cenários, como a árvore de habilidades que pode ser aprimorada com pílulas, upgrades de armas com peças, colecionáveis e o caderninho de anotações de Ellie. E não posso deixar de comentar sobre as inúmeras opções de acessibilidade (algumas bastante divertidas, em especial a câmera lenta), prática louvável que deveria ser padrão na indústria de jogos.
A vingança nunca é plena
O primeiro The Last of Us quebrou paradigmas dos videogames ao contar boas histórias, fazer refletir e ensinar coisas novas sobre as pessoas e sobre o mundo. The Last of Us: Part II faz isso nas primeiras horas e não vai além. A estrutura do jogo, que coloca o jogador no controle da protagonista e da antagonista, é interessante, mas o roteiro míope prejudica a experiência. Os flashbacks nos dizem muito mais sobre os personagens do que os eventos do jogo em si.
Como membro da comunidade, não posso deixar de comentar sobre a importância da representatividade de The Last of Us: Part II. Os episódios de rejeição que Ellie e Lev sofrem em suas próprias comunidades são o espelho de uma sociedade que ainda não aprendeu a respeitar as diferenças. A inclusão destes personagens escancara que homofobia e transfobia são violências, causam danos físicos e psicológicos aos que foram submetidos e não devem ser tolerados. Videogame é uma válvula de escape do mundo exterior, um espaço seguro livre de assédio ou julgamento, e suas obras precisam – cada vez mais – respeitar e valorizar a experiência e a trajetória de cada pessoa.
The Last of Us: Part II é um fenômeno social e um ótimo produto de entretenimento. O final é emocionante e tem uma enorme carga dramática. O primor técnico está presente na estética, atuações, física e mecânicas. Mas confesso que preferiria ter mantido intacta a memória afetiva de Joel e Ellie, como estava no final do primeiro jogo, do que ficar com o vazio que senti ao terminar o segundo jogo.