Não é à toa que um dos poucos novos gêneros da última década veio dos games da From Software. Inúmeros tentaram imitar ou homenagear o legado de Dark Souls, Bloodborne e Sekiro, e alguns até obtiveram sucesso nessa empreitada, mas é inegável o quão difícil é atingir o mesmo patamar alcançado pelo icônico estúdio. Contudo, ainda há espaço para tentativas e existe bastante alma em Mortal Shell para se destacar entre os souls-like atuais.
O RPG de ação da Cold Symmetry saiu no dia 18 de agosto para PC (Epic Store), PS4 e Xbox One, e tem previsão de sair na Steam em 2021. A entrega foi uma experiência bem surpreendente, com mecânicas diferentes, um combate no ritmo de Dark Souls e uma dificuldade considerável.
O começo é bem conhecido para jogadores de Souls: você está literalmente pelado e não sabe onde está e, após aprender os movimentos e comandos básicos, já tem um inimigo com uma barra de vida considerável pela frente. A morte é praticamente certa e uma baleia estranha vai te engolir e jogar em outro lugar, onde você encontrará sua primeira carcaça.
A história se passa em Fallgrim e seus arredores, que abriga, em seu centro, o hub do jogo. O universo e as localidades de Mortal Shell parecem longos até, mas o game é relativamente curto. Leva-se em torno de 12 horas para terminar pela primeira vez.
Com casca e tudo
O game tem quatro carcaças (ou cascas, se você preferir) disponíveis, com níveis diferentes de durabilidade, vigor e determinação. A primeira refere-se ao nível de vida do personagem, enquanto que o segundo é a popular barra de estamina e o terceiro fator é utilizado pelas habilidades especiais das armas e para o riposte.
As carcaças propriamente ditas são: Harros, o Vassalo; Tiel, o Acólito; Solomon, o Erudito; e Eredrím, o Venerável. Cada uma das carcaças possui uma árvore de habilidades, como se fosse uma determinada build ou classe. Enquanto Harros é a mais equilibrada entre todas as características, Tiel tem muita estamina, Solomon vários usos de determinação e Eredrím uma barra gigante de vida.
Tal como Sekiro, você tem uma chance de ressurreição após morrer. Ao término da barra de vida, seu personagem é literalmente ejetado da carcaça e os inimigos ficam petrificados por alguns segundos. Nesse tempo, você pode tentar retornar à carcaça para obter mais uma barra de vida, mas qualquer hit fora da carcaça vai te matar em definitivo. Esse tempo pode ser estratégico em momentos com muitos inimigos, oferecendo uma janela suficiente para se recolocar na batalha.
Porém, como um digno souls-like, você não encontrará ou poderá escolher todas as carcaças logo de cara. Você precisa localizá-las no mapa, usando alguns totens que darão uma referência visual do local.
Ao avançar e derrotar inimigos, você acumula tar (a moeda do game) e os vislumbres, que valem como pontos de experiência para evoluir a árvore de habilidades. Aqui vale uma nota: essas habilidades não fazem muita diferença no gameplay e não empolgam tanto ao serem completadas. No restante, temos um pacote completo aqui: rolagem e esquivas, ataques e combos, iframes salvadores e status de fogo, gelo e veneno.
Como checkpoint, as bonfires são substituídas pela figura da Irmã Genessa, personagem que salva e upa as habilidades de cada carcaça. Outra diferença interessante são os itens de cura. Diferente da mecânica do estus, que recarrega a cada parada, o principal item de cura, um cogumelo, é gerado de tempos em tempos em vários pontos estratégicos do mapa, como nas proximidades de chefes.
Há que endurecer, mas sem perder o timing jamais
A grande pegada do game, no entanto, fica por conta da mecânica de endurecimento, que dá uma boa variação de movimentos e estratégias na hora do combate. Essa mecânica literalmente endurece o personagem, criando uma casca ao redor do corpo que aguenta um dano de ataque ou hit de dano, além de poder tontear o oponente.
Como você não tem um botão de defesa ou escudo, esse período com a casca dura oferece esse balanceamento. Você pode carregar um ataque forte, por exemplo, e antes de desferir o golpe acionar a casca. Seu inimigo vai lhe acertar, pode ser que tome dano de tontura e desequilibre, e ao desendurecer, você acerta o golpe previamente apertado.
É nessa parte da mecânica que Mortal Shell se distancia dos demais souls-likes, ao introduzir um fator novo que muda a jogabilidade de fato. Obviamente alguns combates ainda são muito duros ou ficam fáceis ou previsíveis depois de algumas mortes, mas é bastante interessante esse balanço entre ataque e endurecimento. Só a tentativa de inovar em um dos quesitos mais difíceis de recriar em um souls-like, o combate, já é bastante válido por si só.
Ainda no gameplay, o seu ritmo é muito mais similar ao primeiro Dark Souls do que aos demais games da From. Diferente de Bloodborne e Sekiro, que dependem da pressão quase constante do jogador em cima do inimigo, em Mortal Shell o combate é mais lento, mais retranqueiro em muitas partes. Em certos momentos, o cenário apertado dá uma dificultada, dando aquela roubadinha costumeira, mas quem já passou pelos clássicos e pelos novos souls-like já sabe como é.
Na parte dos gráficos, o visual do game é muito bom, a quantidade de detalhes e a qualidade das texturas das carcaças é excelente (especialmente a de Eredrím), além dos cenários bem bonitos e detalhados (com até direito a guitarra e carinho em gatos), no estilo dark fantasy. Um dos locais lembrou bastante Destiny e suas construções que ficam levitando no nada. As animações dos movimentos e ataques são bem fluidas, com uma variedade grande e fazem diferença na hora de planejar o ataque.
Outra mecânica muito interessante e que estimula a exploração é o descobrimento da função dos itens. Ao pegar algo, você não saberá qual é a função, descobrindo apenas depois de usar o item um determinado número de vezes. Isso gera momentos desgraçados, principalmente nos primeiros chefes, quando o jogador sai usando tudo na esperança de ganhar alguns pontos de vida e acaba saindo da carcaça e sendo escorraçado pelo chefe. Claro que, após certo tempo, os itens ficam previsíveis para os mais experientes, mas não deixa de ser uma escolha de mecânica inusitada.
Um ponto negativo seria o backtracking excessivo em algumas partes, principalmente depois das batalhas contra os principais chefes, em que há um aumento no número de inimigos, ficando meio cansativo voltar todo o caminho. Mas isso é algo bastante compreensível, sob a perspectiva do tamanho do estúdio. Provavelmente faltou perna ou tempo para uma solução melhor, ou até mesmo a opção de reutilização do cenário.
Com mecânicas que saem da pura e simples inspiração dos games da From, de certa forma Mortal Shell traz um alento para os fãs de Souls em um ano tão sofrido – não é só a pandemia, mas sim a eterna espera por qualquer coisa de Elden Ring.
Levando-se em conta que é um estúdio novo e uma equipe pequena, o game consegue, mesmo em um gameplay mais curto dentro do gênero (e um preço condizente com isso), extrair boa parte da essência de sua inspiração e ainda adicionar fatores novos e relevantes. Dessa forma, Mortal Shell é uma bela pedida e, até o momento, uma das grandes surpresas de 2020.
*A análise desse jogo foi realizada no PC com uma cópia cedida gentilmente pela desenvolvedora.