Uma crise de identidade nunca foi tão proeminente em um videogame antes. Fallout tornou-se uma franquia pioneira em definir alguns parâmetros de role-playing game desde sua concepção pela Interplay Entertainment – suas escolhas impactavam o caminho que a história tomava, seu personagem era constituído de atributos que demonstravam real impacto no seu gameplay e mais uma porção de outros detalhes que faziam Fallout ser um marco para quem gostava de uma boa história e um passeio por terras destruídas por bombas nucleares.
O anúncio que Fallout 76 seria um jogo totalmente online não me causou espanto; estava até animado para ver como suas mecânicas estritamente singleplayer funcionaram num ambiente com outros jogadores. V.A.T.S em tempo real? Sem sistema diálogo e NPCs humanos? História contada por holotapes e notas escritas? Como já diria John Denver em seu hit inspirador ao trazer West Virginia em Fallout 76: country roads, take me home. Porque isso aqui não tá nada legal.
Você vai emergir! Bem, mais ou menos…
A premissa é simples: os residentes da Vault 76 foram os primeiros a sair de seus abrigos nucleares e impostos a desbravar a vida rural em Appalachia, no leste dos Estados Unidos. Apenas 25 anos depois das bombas terem destruído a capital americana, a Vault-Tec preparou uma saída especial para seus residentes da Vault 76 no dia da retomada de terras americanas 300 anos depois – chamado de “Reclamation Day”. Como a destruição causada pelas bombas foi bem recente, espere ver por aqui uma vegetação ainda verde e colorida, escombros inteiros e nenhum sinal de vida humana. Toda a trama por trás das histórias ambientadas em Fallout 76 são recriações do passado, algo que já aconteceu antes da sua Vault abrir.
Não há nenhum humano para te contar a história daquela região, nenhum humano para dialogar ou entender mais dos sobreviventes que habitam West Virginia. Até mesmo os inimigos humanos, clássicos de Fallout, os Raiders, não existem mais. Uma das histórias principais gira em torno de descobrir a origem de uma doença radioativa que afetou as pessoas da região, conhecido como ”scorched disease”. Esses novos inimigos, os scorched (queimados, em tradução livre) são parecidos com os famigerados ghouls – ameaça já presente em outros games da franquia – com o diferencial que todos os scorched são agressivos e aparentemente controlados por algum tipo de hivemind central.
As holotapes, aquelas fitinhas com logs de áudio que você ouve no Pipboy, são parte crucial para contar mais sobre essa doença e outras quests do jogo. São monólogos, diários que podem chegar aos 3 minutos de falatório, encarregados de te explicar e expandir o mundo de Fallout 76. Sem uma opção de pausar o áudio ou voltar para algum ponto específico, prestar atenção nesse blablaba incessante por alguns minutos seguidos pode ser um desafio maior do que matar um grupo de Super Mutantes. É entediante, chato e completamente dispensável em várias ocasiões. Como se não bastasse, cartas e notinhas escritas ajudam a fomentar esse sentimento entediante com textos desnecessariamente longos para explicar algo que eu já ouvi numa holotape antes.
Falando desse jeito pode soar muito preguiçoso da minha parte, mas acredite, eu não fui o único. Todo o dinamismo de uma conversa, com escolhas de diálogo, foram substituídos por textos e monólogos incansavelmente chatos. Me leva a pensar: algum dos desenvolvedores realmente acreditou que isso seria divertido? Imersivo? Tenho minhas dúvidas. Não espere 1/3 das histórias intrigantes ou emocionantes dos outros Fallouts por aqui. Foi um desperdício tremendo por parte da Bethesda e isso ficou bem evidenciado quando tudo o que eu encontrava no mapa eram hordas de inimigos querendo me comer vivo.
Os problemas técnicos
Esse é um tópico bastante discutido quando falamos da Bethesda. Seu histórico não é favorável e quem já tentou se aventurar em Fallout 3 ou Skyrim nos consoles sabe a tragédia que o PlayStation 3 passou. O uso recorrente de mods pela comunidade foi algo que salvava os jogos da empresa, com dizeres bem conhecidos: “só esperar o jogo sair para a comunidade consertar”. E de fato era o que acontecia. Fallout 4 é um jogo maravilhoso no PC com a adição de vários mods que consertam bugs, adicionam qualidade de vida e até mesmo novos conteúdos. Em Fallout 76 ainda não saberemos se esse será o caso.
A nova empreitada não poderia ser diferente: bugs e problemas de performance são uma das maiores críticas ao jogo, e mesmo após um patch que chegou a pesar 47GB nos consoles, o resultado é bem precário. Fui impossibilitado de completar várias quests (inclusive algumas da história) por conta de NPCs desaparecendo e marcadores da quest sem direção fixa. Fora os clássicos problemas: inimigos travados, desaparecendo, fazendo T-pose e outras bizarrices. Tudo isso em um ambiente online beira o inadmissível.
A performance flutua e sofre para marcar os 30 quadros por segundo (nos consoles, novamente). Há várias partes do mapa que destroçam seus FPS aparentemente por nada ou sem maiores explicações. A parte mais triste disso tudo é saber que os desenvolvedores vão passar mais tempo corrigindo problema do que pensando em novas alternativas de melhorar o produto como um todo. Lastimável.
O fator multiplayer
Todo o marketing, propaganda e atenção foi direcionado aqui. E o multiplayer? Como é dividir um mapa quatro vezes maior que o de Fallout 4 com outra dúzia de jogadores? Realmente houve o que a Bethesda propôs de incentivar uma comunidade a cooperar e sobreviver em meio às adversidades da desolação nuclear? A resposta, até o momento, seria em partes. Posso citar dois exemplos de interação com outros jogadores que foram interessantes (mas completamente banais em outros jogos online/MMOs): encontrei dois jogadores conversando sobre suas respectivas quests e um deles estava procurando por alguns itens específicos. Como estava na mesma área que ele, imediatamente se direcionou a mim e perguntou (via chat de voz) se eu tinha o item que ele precisava. Como não estava com microfone conectado no momento, apenas respondi com um emote fazendo um gesto positivo. Me perguntou se eu poderia vender pra ele, por 5 caps (dinheiro no mundo de Fallout) e disse que sim. Abri a tela de troca e vendi o item.
A outra situação foi participar de um evento público com outros três jogadores. E… foi isso, basicamente. Pode parecer tosco e até meio bobo, mas esse tipo de interação conseguiu suprir em partes do que eu esperava ao encontrar outros sobreviventes pelo caminho. É o suficiente? Provavelmente não. Vai ficar enjoativo com o tempo se nada de novo for implementado para melhorar essas interações? Provavelmente sim. Como Todd Howard, diretor do jogo, bem comentou na E3 durante a revelação oficial: “é o apocalipse, não um parque de diversões”.
Eu queria que fosse um parque de diversões, Todd. Eu realmente queria.
O PvP durante minha jogatina foi nulo, pois não há motivo o bastante para querer atacar outro jogador pelo simples prazer de fazer isso. Qualquer pessoa que você atacar primeiro vai receber dano reduzido até revidar, dando tempo o suficiente para o jogador atacado ter uma posição viável e se equipar até os dentes pra acabar com a palhaçada. Consegui ver apenas um evento de caça a outro jogador, mas que infelizmente terminou em alguns poucos minutos antes de eu conseguir chegar no local.
Se a Bethesda realmente conseguir implementar alguma coisa chamativa para que a comunidade leve isso como um jogo verdadeiramente multiplayer só o tempo dirá. Até o momento é nítido que não estão fazendo um bom trabalho em relação a isso.
O potencial desperdiçado
Fallout 76 foi uma experiência estranha, frustrante e com uma eterna sensação de potencial jogado fora. O mundo é grande, chamativo, com uma boa variedade de inimigos – mas que apenas isso não consegue se traduzir em um título sólido. Seus bugs e travamentos constantes tornam a jogatina enfurecedora e nauseante, a movimentação datada e travada também não ajuda com as mecânicas já conhecidas do título anterior e sem nada além para acrescentar.
Eu realmente tinha alguma fé quando anunciaram esse jogo, visto que seria uma coisa totalmente nova. Dada a inexperiência da Bethesda Game Studio com títulos multiplayer, sua engine e ferramentas que já não produzem visuais e mecânicas fidedignas e condizentes com a atual realidade dos triple-A no mercado só batem o prego no caixão de algo que tinha um potencial há ser explorado.
Boa parte dos problemas podem ser remediados ao longo prazo, mas o estrago já está feito. Fallout 76 terá que ter um completo ressurgimento das trevas para atrair os jogadores céticos novamente e consolidar sua fragmentada base de jogadores.
[alert type=white]A análise foi feita com base na versão de PlayStation 4 gentilmente cedida pela distribuidora.[/alert]