Uma das grandes atrações da BGS desse ano foi o estande de Street Fighter V. Além de contar com a presença de um dos produtores do jogo, Yoshinori Ono, também fomos apresentados à mais nova personagem brasileira da franquia, a lutadora Laura. A inspiração para Laura, segundo Ono, seria uma viagem realizada ao Rio em 2011: “Fiquei encantado com a cidade, com Copacabana, com a capoeira e com a beleza da mulher brasileira”.
Correspondendo a estereótipos já esperados em Street Fighter, Laura é uma moça de beleza notável, com roupas que dão bastante ênfase a seus atributos físicos, e utiliza golpes que fazem um mix entre jiu-jitsu e capoeira, além de alguns ataques especiais elétricos. Para completar a estreia da personagem, também foi revelado um trailer (vazado algumas horas antes do evento), que mostra Laura lutando no Rio de Janeiro, tendo ao fundo, como cenário, um morro, barracos, um tucano, passistas de carnaval, um vendedor de frutas e uma taça gigante da Copa do Mundo ocupando o lugar do Cristo Redentor, entre outras coisas que você mesmo pode conferir:
Não preciso dizer que as reações a tal trailer foram as mais diversas: pipocaram na timeline críticas tanto ao visual erotizado da personagem brasileira, como também à representação do Brasil feita pelo cenário, e o furor do público brasileiro foi e continua sendo grande. Não pretendo me adentrar aqui à discussão da erotização das personagens femininas feita por essa franquia (não é só com a Laura, infelizmente); aliás, publicamos recentemente um ótimo artigo abordando a questão da representatividade nos games e também um podcast sobre o tema (mais do que recomendados). Venho hoje tratar de uma outra questão também polêmica, que é a maneira como reagimos ao vermos nos games uma versão supostamente deturpada do que seria o Brasil.
Uma das premissas básicas dos videogames, em sua origem, foi a de unir tecnologia e entretenimento, mostrando coisas que ainda não foram vistas ou que, por alguma razão, não podem ser vistas. Dessa forma, não há barreiras para a criatividade dos designers: podemos ora ser encanadores salvando princesas, ora criaturas com poderes mágicos, em mundos igualmente fantasiosos:
“[O espaço do videogame] é um espaço que, por definição, deve ostentar a menor semelhança possível com a realidade ordenada que nós conhecemos para que seja convincente e bem-sucedido. (…) É nesses ambientes que nós vemos algumas das mais espetaculares visões trazidas à vida em uma série de subcategorias” – Nic Kelman, em seu livro Video Game Art
Obviamente há também o nicho dos jogos realistas, que procuram passar uma maior impressão de semelhança com a realidade, mas mesmo neles ainda vemos situações inconcebíveis na vida real. Entre os jogos que buscam essa referência ao real, temos como grandes exemplos games esportivos no geral (futebol, corrida e outras inúmeras modalidades), que trazem não apenas reconstituições das locações verdadeiras onde tais competições acontecem, como também os próprios atletas em sua versão jogável. Por outro lado, temos jogos que, apesar de trazerem elementos da realidade, fazem parte do grupo dos jogos de fantasia, nos quais não há regras ou barreiras a serem obedecidas. Street Fighter, sem dúvidas, pertence a essa última categoria.
Desde os primórdios da franquia Street Fighter, fomos apresentados a um mapa nipocêntrico, que não deixava dúvidas de que a história se passaria a partir do olhar e da cultura do povo japonês. Com a Capcom dividida entre Japão e Estados Unidos, tivemos definidas as nacionalidades dos protagonistas Ryu e Ken, que precisavam enfrentar diferentes desafios em viagens aos países presentes naquele mapa, com realidades bastante exóticas e distintas de suas respectivas nações. Em cada local, um cenário e um lutador representando aquela nacionalidade. Foi assim que vimos nascer Guile representando os Estados Unidos, Dhalsim a Índia, E. Honda o Japão e Blanka o Brasil, por exemplo. A ideia aqui era bastante evidente: trazer em poucos segundos algumas imagens de fácil reconhecimento daquelas localidades; assim, temos um Guile militarizado, um E. Honda lutador de sumô e um Blanka… na selva.
Principalmente a partir do surgimento de Blanka (restringindo apenas ao ambiente dos games) vemos e ouvimos uma série de questionamentos a respeito de qual seria a imagem de nosso país lá fora. Somos uma grande floresta amazônica? Futebol, samba e carnaval? Violência e corrupção? E a cada nova mídia lançada, seja ela um filme, game ou outra qualquer, se inicia uma espécie de jogo dos sete-erros, onde o público não se cansa de procurar e apontar, às vezes de forma descontraída, outras de forma raivosa, todas as referências errôneas ou exageradas em relação ao nosso país. Diante dessa realidade, é possível inclusive dizer que a afirmação de que algo é brasileiro é, na verdade, parte de uma extensa cadeia de negações, repetida, muitas vezes, à exaustão. Brasil não é só samba e carnaval. Brasil não é só futebol. Brasil não é só belezas naturais. Brasil não é só problemas sociais. Mas diante de tantos “nãos”, o que ou quem de fato somos? Se não somos nada disso, o que sobra? Quais seriam as características maiores e definitivas para representarmos brevemente a nossa cultura?
Não venho aqui isentar Street Fighter da acusação de estereotipar nosso país, mas basta dar uma olhada mais atenta ao jogo para ver que não somos os únicos, afinal, eu nunca conheci um indiano soltando fogo pela boca (alô Dhalsim), para citar apenas um exemplo. O ponto é: por que nos incomodamos tanto? Sabemos tratar-se de um jogo ficcional, num mundo fantasioso e, ainda assim, nos irritamos ao ver Laura dar choques enquanto japoneses dão hadouken e tudo parece perfeitamente normal. Trazendo para uma perspectiva mais ampla, percebo aqui o mesmo tipo de indignação seletiva que ocorre quando achamos ruim quando exaltam a beleza das nossas passistas e a grandiosidade do nosso carnaval, mas não nos incomodamos quando nossos amigos fazem a piada do chinês do pastel de “flango”. De quando nos revoltamos quando algum estrangeiro nos pede para ensinar a sambar, mas achamos normal brincar com muçulmanos generalizando-os como terroristas. E também de quando nos orgulhamos em hastear a bandeira do “hue hue br” e da “zoeira” internet afora e ficamos ofendidos quando chamam o famoso “jeitinho brasileiro” de corrupção.
Não tenho a intenção de ser o caga-regras da internet e definir com o que você deve ou não se indignar, e sim, de fato, Street Fighter teve e ainda tem uma série de questões problemáticas que merecem ser discutidas. Hoje, no entanto, o meu ponto é outro: por que essa grande dificuldade em reconhecer quem, de fato, somos? Por que esse incômodo em relação a algumas manifestações culturais singulares, que são admiradas por tantos lá fora? Por que essa pressa e revolta ao tentar corrigir tudo e todos sobre o que define ou não o que é o Brasil? O que estaria por trás dessa indignação? Um desconforto, um constrangimento disfarçado? Afinal, o que é um brasileiro para você?
Talvez não sejamos apenas samba, futebol, carnaval. Talvez não sejamos apenas Rio, Cidade de Deus ou Tropa de Elite. Talvez não sejamos apenas Amazônia, pantanal, mangue. Talvez não sejamos apenas Blanka ou Laura. Sim, de fato, não somos apenas isso. Mas, querendo ou não, somos também um pouquinho de cada uma dessas coisas.
E você, caro leitor? O que acha de tudo isso? O cenário de Street Fighter V é ou não é Brasil? Deixe seu comentário!
Sugestão de vídeo para assistir agora ou durante a próxima indignação patriótica:
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Fontes consultadas: Omelete | A nacionalidade em jogo: representações do Brasil em jogos digitais