A essa altura do campeonato, já é unânime que a maioria das adaptações cinematográficas de games são abaixo do esperado. E não acho que eu precise me alongar muito pra dissertar sobre o quanto essa afirmação é certeira: a gente já viu o que o tratamento de hollywoodiano fez com franquias como Resident Evil ou Street Fighter. A associação entre games e produções cinematográficas há muito está desgastada.
Mas acima de qualquer cenário histórico sobre assassinos e templários ou sobre corporações farmacêuticas que causam apocalipses zumbis, há algo intrínseco nessa mídia: o game design. É o projeto de um título; seus objetivos, mecânicas, regras e peculiaridades. O que importa, sobretudo, é a interatividade e conexão que o jogador possui com os sistemas fundamentais que regem o jogo. Esses conceitos já foram utilizados de forma a moldar e enriquecer narrativas no cinema e na televisão, mas acho que não recebem a atenção merecida.
A exemplo do filme No Limite do Amanhã (2014), que conta a história de um soldado que, durante um confronto com alienígenas, ganha a habilidade de “reiniciar” um dia quando quiser (ou quando morrer). Com isso, ele passa a reiniciar o dia constantemente para aprimorar suas táticas de combate e, por fim, vencer os extraterrestres. Se a alusão ao sistema de save/checkpoints não estava clara o suficiente, a forma como a técnica é utilizada com certeza torna a inspiração bem óbvia: não só a progressão de habilidade proveniente da repetição é algo explorado no enredo, mas o save scumming também.
A abordagem pode não ser absurdamente incrível, mas faz paralelos interessantes com o game design. No entanto, não trata tais conceitos de forma tão inteligente quanto Westworld, série da HBO inspirada no filme homônimo de 1973.
O seriado compartilha seu nome com o maior chamariz da narrativa: um parque de entretenimento cuja temática parece saída diretamente de um filme estrelado por Clint Eastwood. Os visitantes podem ir ao parque para realizar diversas atividades: desde conversar em bares e se satisfazer em prostíbulos a até participar de jornadas em busca de algum criminoso. Porém, os anfitriões, “funcionários” dessa Disneylândia do faroeste, são robôs que agem como pessoas de verdade. E é aí que as coisas começam a ficar interessantes.
Tais personagens possuem rotinas fixas e estão prontos para oferecer aos visitantes diversas tarefas, cuja estrutura se assemelha a quests. Os anfitriões estão preparados para diversas situações, se adaptando e improvisando conforme a influência do visitante no progresso dos eventos. Isso dá origem a narrativas emergentes, que também são um conceito adotado em games: o surgimento de momentos únicos e não-programados dentro do jogo, nascidos a partir da interação entre jogadores e NPCs. Lembra do que eu disse sobre a relação dos jogadores com os sistemas?
Sendo Westworld quase um jogo de mundo aberto na vida real, é de se imaginar que existam bugs também – que, inclusive, rendem resultados muito mais curiosos do que os que você verá em uma produção multimilionária da Ubisoft ou Bethesda. O que é realmente interessante é que existe uma preocupação em explicar o que é o bug em questão, em oposição ao argumento genérico de que “houve uma falha no <insira jargões tecnológicos aqui>”, visto frequentemente em outras ficções.
E se existe um jogo, é claro que existem também seus criadores. Acompanhamos nos bastidores todas as discussões referentes à correção de bugs e adição de novidades ao parque. Engenheiros de IA debatem não só sobre melhorias aos anfitriões para que ajam de forma mais humana, mas também sobre a adição de novas “narrativas” — o equivalente das quests no vocabulário da série — de forma que muito se parece uma equipe de desenvolvimento discutindo sobre a inclusão de uma nova fase ao seu jogo. Em um dado momento, uma narrativa bombástica é sugerida ao fundador do parque. Ele nega a proposta, seguindo com um discurso que pode ser aplicado a qualquer serviço, mas com certeza lembra mais a indústria de jogos, dado o contexto.
“Não é uma questão de oferecer aos visitantes o que você acredita que eles queiram. Não é tão simples assim. Empolgação, medo, diversão… são apenas truques. Os visitantes não voltam pelas coisas óbvias que fazemos. Eles retornam por causa das sutilezas, dos detalhes. Eles retornam porque acreditam que descobriram coisas que os outros não sabem”.
Alguns outros conceitos dos games também são demonstrados dentro da série, embora não com tanto foco: sistemas de loot e upgrade, a diferença entre jogadores iniciantes e profissionais, e até os whales – aqueles que gastam uma grande quantia de dinheiro dentro do jogo. O grande elefante na sala de estar é o fato de que os visitantes não podem ser atacados pelos anfitriões, o que, a meu ver, quebra um pouco toda a imersão que a série tenta transmitir.
Mesmo assim, arrisco dizer que nossa querida mídia interativa é melhor representada por obras como Westworld, que não estampam nomes de franquias multimilionárias em seu nome. Aqui, a representação do videogame se manifesta por meios muito mais sutis do que duas horas de Michael Fassbender vestido de assassino, mas a abordagem funciona de forma bem eficiente. Afinal, jogos vão além do que um enredo ou uma ambientação.
Ainda não tive a oportunidade de terminar de assistir à série, mas pelo que pude observar até agora, ela já fez mais em prol dos videogames do que qualquer longa-metragem baseado nas franquias que tanto amamos.