Análise: Mulaka, uma viagem mágica pela mitologia mexicana

Análise – Mulaka (2018)

Como fã e entusiasta dos videogames, sempre me empolgo quando me deparo com obras que perseguem objetivos que vão além do mero entretenimento. Sim, jogos são uma atividade lúdica em sua essência, mas também podem ser utilizados como plataforma para introduzir outros tipos de informações e experiências, além dos clássicos quebra-cabeças e desafios. Nessa pegada, me diverti muito quando joguei Never Alone (2014) e pude conhecer um pouco mais sobre a cultura dos Iñupiaq, povo nativo da região do Alaska, assim como estou ansioso para dar uma conferida na Tour de Descoberta pelo Egito Antigo, introduzida pela atualização mais recente de Assassin’s Creed Origins (que ainda não deu tempo de testar, haha).

Sendo assim, fiquei bastante animado quando tive a oportunidade de conferir o recém-lançado Mulaka, do estúdio Lienzo, que foi inteiramente construído tomando como base a cultura e a mitologia do povo Tarahumara, nativos da região norte do México. O jogo acompanha a história de Mulaka, um Sukurúame do povo Tarahumara, uma espécie de xamã que consegue acessar o mundo espiritual e se comunicar com as divindades cultuadas por sua tribo. Mulaka é informado sobre a existência de Teregori, uma entidade maligna que estaria corrompendo seres e lugares e ameaçando o equilíbrio e a existência de seu mundo. Decidido a dar fim em Teregori, Mulaka parte em busca dos semideuses, para pedir o poder deles emprestado e descer até o mundo inferior para derrotar o seu maior inimigo.

 

Na pele de um Sukurúame

O jogo se baseia nas características do povo Tarahumara para construir seu protagonista. Segundo as lendas dessa tribo, seus nativos eram capazes de percorrer longas distâncias sem nunca se cansar, podendo, inclusive, caçar cervos apenas os perseguindo, até que os animais caíssem de exaustão. Dessa forma, Mulaka não possui uma barra de estamina e pode correr infinitamente sem ficar cansado.

Outra lenda que baseou a construção da jogabilidade foi a de que os nativos dessa tribo, se fossem homens, possuíam três almas e, se fossem mulheres, quatro. Assim, Mulaka sempre terá três almas, que funcionam como três barras de HP, que vão diminuindo conforme você recebe dano; uma vez que uma delas chega ao final, você perde uma vida e começa a consumir a segunda. Se ficar sem as três almas, o jogo mostra a mensagem de “game over”.

Para recuperar HP, é possível fabricar poções com as ervas espalhadas pelos cenários. Essas ervas também permitirão, conforme o jogo for progredindo, fabricar poções explosivas, de defesa e de ataque aumentado.

Quanto ao sistema de batalha, Mulaka está equipado com uma lança, que permite ataques rápidos e ataques fortes. Ela pode, além disso, ser arremessada para atingir alvos mais distantes. O personagem também consegue utilizar magia e alternar um modo de visualização, do mundo real para o mundo espiritual; alguns inimigos só são visíveis no mundo espiritual, então será sempre necessário gerenciar sua barra de magia e ficar alternando entre os dois mundos conforme se avança na história.

 

Uma viagem mágica pelo México

De maneira geral, Mulaka segue, de forma bastante bem-construída, os moldes de outros jogos de aventura, numa pegada The Legend of Zelda (há, inclusive, referências à Zelda nos troféus do jogo), com um mundo semi-aberto: há uma série de mapas, que precisam ser explorados e ter seus puzzles resolvidos, sempre com uma batalha contra um Chefe ao final. Os objetivos normalmente se resumem a localizar os semideuses, adquirir seus poderes e derrotar os inimigos que estão assolando aquela região. Todos os inimigos também são baseados em mitos Tarahumara, e é possível acessar um catálogo com informações detalhadas sobre cada um deles a partir do menu.

O design do jogo é um show à parte. O estúdio optou por um visual minimalista, com formas baseadas em polígonos, e contrastou essa “simplicidade” nas formas com uma paleta de cores extremamente colorida e marcante. Os visuais são impressionantes, bem como o design de cada um dos personagens e inimigos, suas movimentações e características. A trilha sonora é composta fazendo uso de instrumentos indígenas, que remetem à cultura Tarahumara, e também há o uso do dialeto próprio daquele povo durante as narrações. Um trabalho muito bem executado e que enche olhos e ouvidos.

No entanto, da mesma forma que Mulaka acerta grandiosamente em suas escolhas de design e construção de níveis, também peca indefensavelmente em alguns outros aspectos mais técnicos. Antes de qualquer coisa, quero ressaltar que joguei Mulaka em uma versão de avaliação, liberada uma semana antes do lançamento, e sei do trabalho da equipe para consertar alguns dos bugs que estavam afetando a experiência – uma atualização já foi lançada no PS4 inclusive. Ainda assim, existem alguns pontos negativos que estão mais relacionados às escolhas na criação do que a bugs propriamente ditos, e é sobre eles que quero falar.

 

Você não tem mesmo mais nada a dizer?

O primeiro ponto crítico é a falta de informação. Chega a ser até engraçado que um jogo com o objetivo de divulgar uma cultura entregue tão pouco no que tange à comunicação sobre a história e sobre o mundo. Os personagens conversam muito pouco entre si e muito, muito pouco é realmente dito de fato. Geralmente segue-se a linha: “Mulaka, preciso de sua ajuda, um monstro está raptando as crianças, derrote-o e salve nossa aldeia!”. Ok, você vai, mata o monstro e não se toca mais no assunto. Nada além de poucas frases sobre o monstro no catálogo de inimigos. Aqui, eu gostaria de poder ter tido a oportunidade de mergulhar mais a fundo naquela cultura, entender aquele mito, conversar mais com aquelas pessoas, mas tudo era muito rápido e sem grande profundidade. Mesmo os colecionáveis espalhados pelo mapa, que foram colocados justamente para fornecer mais peças de informação sobre aquela cultura, pouco dizem. Você se mata (literalmente) para chegar a lugares inatingíveis para, então, ser recompensado com um item que nada faz e é descrito em uma ou duas frases. Fui atrás de apenas três desses itens, simplesmente porque o esforço não valia a pena e não havia motivação nenhuma para fazê-lo.

Essa comunicação mínima chega a atrapalhar o andamento do jogo em si. Há inúmeras estruturas espalhadas, desde os mapas iniciais, com as quais não é possível interagir de forma alguma, a menos que se progrida no jogo, consiga as habilidades necessárias, e só então retorne a esses lugares para poder acessá-los. O problema é que ninguém te conta isso. No início do jogo, fiquei diversos momentos tentando desbloquear esses lugares e depois segui em frente, com o sentimento ruim de que havia deixado algo importante para trás, para, só muito mais adiante, descobrir a habilidade que me faltava. Em uma dessas situações, consegui utilizar a forma de pássaro e acessar por cima uma dessas estruturas, mas acabei preso lá dentro porque precisava da forma de urso (que eu ainda não possuía nesse ponto do jogo) para destruir as paredes e sair dali. Tive que reiniciar meu último save e perder parte do meu progresso por conta disso. Aqui, bastava a inclusão de uma frase na tela, ou um pensamento do próprio protagonista, como é muito comum de se ver em outros jogos, algo do tipo “ainda não tenho o que é preciso para chegar até ali“. Só isso já seria o suficiente.

A falta de diálogo afeta até mesmo a construção do próprio protagonista. Chega a ser difícil ter empatia por alguém que não diz nada, e de quem não se sabe nada, seja sobre sua história, suas fraquezas, suas ambições. O herói chega a ser até mesmo um pouco robótico e isso atrapalha, inclusive, o desenvolvimento narrativo e o impacto que o final da trama poderia ter tido (mas não teve). Uma pena.

 

Eu poderia fazer isso, se você permitisse…

Outra coisa bastante frustrante (e que eu realmente espero que seja afinada em atualizações futuras) é que o timing das ações performadas está longe de ser sincronizado. Há inimigos e quebra-cabeças que pedem que você realize uma série de movimentos, como alternar entre as diferentes formas animais, e que você simplesmente não consegue fazer devido às longas animações.

Por exemplo, toda vez que Mulaka consome uma poção ou tenta recuperar HP, acontece uma animação de dança que leva longos segundos para acabar. Quase sempre essa animação é interrompida por um inimigo te atingindo, e não há nada que você possa fazer. Até mesmo quando você perde uma das almas, há uma longa animação que atrapalha muito o desenvolvimento das batalhas. Um dos chefes, um sapo gigante, requeria que eu o fizesse engolir uma espinha de peixe, para que ele engasgasse e deixasse a língua exposta, seu único ponto fraco. Era necessário desviar dos ataques do monstro, pular as ondas do lago, enfrentar inimigos menores, se transformar em urso e jogar a espinha de peixe na boca do sapo em um momento bastante específico. Só que o tempo consumido por todas essas animações tornava extremamente cansativo conseguir sincronizar meus movimentos com os movimentos do inimigo e conseguir atacá-lo no momento certo. A dancinha de Mulaka precisava mesmo ser tão longa?

Eis o sapo que me deixou com dor de cabeça…

Essa falta de sincronia não atrapalha apenas as batalhas; também é preciso alternar as transformações em animais para acessar determinados locais dos mapas, e muitas vezes o timing entre uma animação e outra falha e você não consegue chegar ao lugar desejado a tempo (principalmente no estágio em que é necessário alternar entre as formas de puma e pássaro). Quero ressaltar que não estou reclamando da dificuldade do jogo em si, não há problema algum em propor um desafio complexo, que exija bastante do jogador. O frustrante é quando você topa o desafio, está com vontade de realizá-lo, mas não consegue, não por inabilidade sua, mas porque o sistema do jogo não permite isso.

 

Um primeiro capítulo promissor

Apesar de uma série de poréns, Mulaka é um jogo bastante interessante. O estúdio Lienzo conseguiu criar não só um mundo visualmente bonito, como também uma série de mecânicas e um modelo de jogabilidade bastante atrativo. Ainda que essa primeira obra pudesse ter sido um pouco mais bem trabalhada, acredito que ela foi bem-sucedida em introduzir um universo vasto e promissor e que eu, com certeza, gostaria de visitar mais vezes. A torcida é para que consigam afinar tudo o que foi proposto em Mulaka e que possam trazer a cultura Tarahumara novamente, em capítulos futuros, ambientados nesse universo culturalmente rico e belo.

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A análise foi feita com base na versão para PS4, gentilmente cedida pela Lienzo. Mulaka está disponível para PS4, Xbox One, PC e Switch, e uma parcela dos ganhos obtidos com as vendas do jogo será doada para o fortalecimento da cultura e da preservação da Serra de Tarahumara.

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